Durante a conferência falamos com o Secretário Nacional de Justiça e Presidente da Comissão de Anistia Paulo Abrão sobre o seu trabalho.
Pergunta: Para começar, nos conte por favor sobre o contexto do trabalho da Comissão de Anistia. Quantos pedidos de reparação foram recebidos desde a sua criação pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, em 2001? Quais esforços tem sido feitos para compensar brasileiros que sofreram violações de direitos humanos entre 1946 e 1988?
Paulo Abrão: A Comissão de Anistia tem a função de promover reparação e reconhecimento – estas são suas duas tarefas fundamentais – para todos aqueles que foram atingidos por atos de exceção durante o regime autoritário. Atos de exceção são todos aqueles que desvirtuaram a esfera do estado de direito no exercício das liberdades públicas e dos direitos fundamentais. Portanto, a comissão aborda violações de direitos humanos, tais como tortura, prisões arbitrárias e banimento.
No que se refere à sua tarefa de promoção de reconhecimento das vítimas, a comissão trabalha com a idéia da declaração de anistiado político. O processo pressupõe o reconhecimento do direito de resistência da população brasileira contra a repressão e, além disso, de reconhecimento por parte do Estado de que ele cometeu erros em relação ao seu dever de proteção dos direitos fundamentais. Portanto, ao longo do tempo, as declarações assumiram feições de um pedido de desculpas públicas aos cidadãos e à sociedade.
Quanto às reparações, a Comissão promove mecanismos de reparação típicos de reabilitação das vítimas. Talvez a maior contribuição da Comissão de Anistia – de um ponto de vista quantitativo – seja a sua capacidade de reunir um significativo número de relatos de atrocidades que, historicamente, nunca foram compilados no Brasil. Isto permite uma certa pluralidade quanto às formas de reparação para estas vítimas, que extrapolam, em muito, as reparações meramente econômicas.
Desde 2001, 70.000 pessoas solicitaram anistia e concedemos aproximadamente 32.000, metade das quais incluíram reparações econômicas, e metade foram simbólicas, na forma de um pedido de desculpas público.
Pergunta: A Comissão de Anistia também está desenvolvendo e implementando um projeto sobre o chamado Memorial da Anistia Política. O senhor poderia dividir mais informações a respeito desse projeto? Como você espera que a memorialização no Brasil contribuirá para a responsabilização de graves violações de direitos humanos?
Paulo Abrão: O Projeto Memórias Reveladas é um centro de referência que facilita a identificação de documentos que estão fisicamente localizados em localidades dispersas no território nacional. Ele se constitui numa ferramenta para a pesquisa de documentos, segundo determinadas temáticas.
O Memorial da Anistia – que está sendo construído – funciona segundo três elementos estruturantes. Primeiro, ele é um lugar de memória – uma representação da narrativa das vítimas como conceito físico. Segundo, o Memorial também se constituirá numa política de memória, pois será uma homenagem às vítimas e será um reconhecimento por parte do Estado ao manter um local sobre estas graves violações, financiado e mantido pelo poder público estatal brasileiro. Numa terceira feição, o Memorial será um lugar de consciência, na medida em que ele se tornará um lócus de formação e educação em direitos humanos, especialmente para as futuras gerações. O projeto Memórias Reveladas e o Memorial da Anistia são políticas federais complementares, ao lado de outras iniciativas de memória locais que o Brasil está implementando.
Pergunta: Recentemente foram iniciadas audiências públicas sobre o Projeto de Lei 7.376/10, que propõe o estabelecimento de uma Comissão Nacional da Verdade para investigar as violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. Como uma comissão da verdade complementará ou promoverá os trabalhos da Comissão de Anistia?
Paulo Abrão: Do meu ponto de vista, tanto a Comissão de Anistia quanto a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos são comissões de verdade e reparação. O que é novo e exclusivo da nova comissão da verdade que está sendo proposta são suas tarefas específicas. A primeira, que não foi competência das duas comissões anteriores, é a identificação da estrutura de repressão que foi instalada durante o regime autoritário. Especificamente, o desenho de sua cadeia de comando e seus respectivos autores.
A segunda é que, de acordo com o projeto de lei, esta comissão da verdade poderá identificar a nomear os violadores de direitos humanos. E a terceira contribuição é que o estado brasileiro assume para si a obrigação de também elaborar uma narrativa oficial da democracia em relação a este passado autoritário, a partir do relatório final da comissão proposta.
Pergunta: O Sr. acredita que o projeto de lei, do jeito que está, permitirá à comissão da verdade cumprir estas funções?
Paulo Abrão: Acredito que um dispositivo que seria essencial para aperfeiçoar o atual projeto de lei seria uma cláusula de garantia de imunidade aos comissionados por eventuais decisões judiciais. Acho que isto daria força aos membros da comissão em suas tarefas difíceis, porém cruciais. Sou daqueles que acreditam que homens e mulheres são os que fazem as instituições e, de certa maneira, o sucesso da comissão depende menos da sua estruturação ideal e muito mais do engajamento e do comprometimento dos conselheiros que serão escolhidos para a compor.
Pergunta: Atualmente há um debate público sobre a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que diz que a lei de anistia brasileira contradiz a lei internacional. Qual é a sua opinião a respeito?
Minha opinião é de que o estado brasileiro tem o dever de cumprir a decisão na íntegra, em todos os seus aspectos. O judiciário agora deveria alinhar o conteúdo e o fundamento da decisão da Corte Interamericana com o conteúdo e o fundamento do Supremo Tribunal Federal. Eu, particularmente, não acredito que exista uma necessária incompatibilidade entre estas duas decisões. Ou seja, uma série de crimes políticos pode ser perdoada no nível nacional, enquanto a categoria de crimes de lesa-humanidade pode ser investigada.
Pergunta: Quais o Sr. acredita que são as prioridades futuras?
Paulo Abrão: O Brasil terá desafios específicos a enfrentar após a aprovação do projeto de lei da comissão da verdade. Primeiro, terá que transformar o processo da comissão em um grande momento de debate público, de modo a formar uma cultura que rejeite toda e qualquer forma de autoritarismo e todas as formas de violações aos direitos humanos.
Segundo, certas reformas institucionais ainda precisariam ser implementadas, tais como a reforma dos sistemas de polícia e do sistema penitenciário que, a meu ver, atualmente é o principal lócus de violação dos direitos humanos. Na agenda da transição, há necessidade de finalizar um processo de reparação e a necessidade de diversificação das políticas públicas de memória pública, que ainda são incipientes. Do ponto de vista da construção da verdade, resta ao Brasil aprovar para si uma lei de acesso à informação pública e ampliar, na consciência jurídica brasileira, um alinhamento irrestrito ao sistema interamericano de direitos humanos.